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sexta-feira, agosto 22, 2008

O Farrista ( Análise de Poema)

O Farrista
(Murilo Mendes)
Quando o almirante Cabral
Pôs as patas no Brasil
O anjo da guarda dos índios
Estava passeando em Paris.
5 Quando ele voltou de viagem
O holandês já está aqui.
O anjo respira alegre:
"Não faz mal, isto é boa gente,
Vou arejar outra vez."
10 O anjo transpôs a barra,
Diz adeus a Pernambuco,
Faz barulho, vuco-vuco,
Tal e qual o zepelim
Mas deu um vento no anjo,
15 Ele perdeu a memória...
E não voltou nunca mais.
Os heptassílabos acima de Murilo Mendes fazem parte de seus poemas sobre a história do Brasil, fazendo este, que agora abordamos, alusão ao descobrimento, como fica claro nos dois primeiros versos que se referem à chegada de Cabral.
O poema, calcado num fato histórico, é todo movimento. É Cabral que chega, é o anjo que vem, vai de novo, transpõe a barra e não retorna mais, é o vento que dá no anjo, é o holandês que dá as caras por aqui. Além disso, a intensidade de movimentação daquele momento histórico é capturado pela alusão a Portugal, França e Holanda, além, é claro, do Novo Mundo. É o período das grandes navegações e, talvez por isso, o anjo também é viajante. É um anjo bem inserido em seu tempo, atualizado, moderno como um zepelim mais que como uma caravela, porque o zepelim pode ser uma caravela que voa e, portanto, uma metáfora quiçá mais apropriada à figura do anjo.
Quanto aos acontecimentos do poema, temos o Cabral(ão) pondo “as patas no Brasil” e o anjo da guarda dos índios, que deveria protegê-los de um tal bode, estava passeando em Paris e, quando regressa, já encontra o holandês por aqui, como que a despistar-lhe. O anjo viaja de novo, abrindo suas asas ao vento, tal e qual uma caravela voadora, um zepelim. Mas ele pegou um pé de vento (linguagem náutica), coisa a que estão sujeitas as naus. Apanhados em certas tempestades de vento, os navios podiam ficar a deriva, viajando a sotavento dias e dias sem ver a luz do sol, podendo vir inclusive a naufragar, e daí, quanto ao nosso anjo,
Ele perdeu a memória...E não voltou nunca mais.
O tom cômico, jocoso que o poema tem é dado pela construção de um personagem insólito: um anjo viajante, displicente, negligente em seu trabalho, farrista, um “playboy”; e pela introdução, na qual Cabral, em flagrante trocadilho com “cabra”, em referência também à significação do nome próprio, põe “as patas no Brasil”. Tal processo animaliza e profana a imagem do branco descobridor. Tal animalização funciona como o avesso do processo de assimilação da imagem do índio como foi historicamente construída, assumida e divulgada por grande parte da cultura branca, senão toda, como bicho. Já a profanação é mais sutil. Ela se dá, porque o trocadilho evoca todas as imagens culturais e religiosas ocidentais presentes na figura da cabra, bode, cabrito, cabrão e pelo combate que o anjo deveria oferecer a tais caprinos, representação de infiéis, apóstatas, pagãos e demônios.
Estranho esse anjo da guarda. Ele é um tanto quanto protestante. Em uma época na qual os ventos de reforma sopravam já há séculos sobre a Europa. A Europa que já vira John Wycliff, os lolardos, John Huss, Jerônimo Savonarola e muitos outros bem antes de Lutero, Calvino e Zwinglio; a Europa que teve a península Ibérica como reduto de cerrada resistência católica, um dos quartéis-generais da Contra Reforma. Pois então, em uma época assim, o anjo da guarda dos índios simpatiza com holandeses e está em Paris, na França do protestante, calvinista, huguenote, evangelista, frei-bode, bode, crente, missa-seca, bíblia, come-santo, nova-seita. E justo um anjo da guarda, algo que se tornou uma doutrina cara ao catolicismo da Contra Reforma, não por sua importância intrínseca ou centralidade no credo, mas por ter se tornado pomo de discórdia teológica com o protestantismo, que não questionava a existência dos anjos, nem o seu ministério, mas questionou todo o sistema de culto, orações e devoção ao anjo da guarda, bem como a postulação de um anjo especificamente destacado para cuidar de certo alguém o tempo todo. A celeuma foi tanta que alguns dos acréscimos feitos ao texto bíblico no concílio de Trento para alterar a edição católica deveram-se especificamente à vontade/necessidade de fundamentar biblicamente a doutrina do anjo da guarda.
O personagem sobre o qual ainda não falamos é o holandês. Navegador também e adversário de Portugal, que, ao aparecer por aqui, acaba funcionando como uma cortina de fumaça para o farrista, que acaba de chegar da Europa, Paris mais precisamente, e o identifica como boa gente. O holandês faz o anjo concluir que tudo está bem e o displicente que “respira alegre” não investiga os últimos acontecimentos, mesmo porque, está pronto para zarpar de novo, e o faz.Assim, a insinuação do poema de que as coisas por aqui não estavam nada bem, como a presença do holandês “boa gente” fizera crer ao farrista, porque o português já estivera aqui chega a ser uma inversão sacrílega para o português católico da época .Mediante inversões e questionamentos, o poema parece perguntar, ou tentar responder a uma pergunta: “onde estava o anjo da guarda dos índios quando os portugueses chegaram aqui”? Uma pergunta à qual católicos conquistadores, jesuítas, colonizadores, não poderiam se esquivar. Bem, se os índios tinham alma, como primeiro se assumiu, tinham uma alma pagã e, portanto, sem direito a anjo da guarda, porém, se tinham a inocência que lhes foi atribuída de início, poderiam, por alguma graça específica, ter alcançado contar com um. Mas então, como o anjo da guarda é parecido com quem protege, esse anjo era livre demais e tinha problemas e cuidados de menos, sem muitos perigosos bodes a combater, o que lhe permitia, por um lado, ser um espírito desplugado, acústico, festeiro; e, por outro, ser um espírito aventureiro e estar acompanhando, como seus iguais que trabalhavam no velho mundo, os grandes progressos, as mudanças, as grandes navegações. Também, se os índios não tinham alma, como se concluiu depois para escravizá-los, então não tinham anjo da guarda mesmo, e quando eles voltam a possuir alma, de modo a não serem escravizados, e o negro africano perde a sua, porque um escravo trazido, via comércio, de outro lugar gerava para a metrópole o lucro que o índio que já estava aqui não dava, os portugueses já estavam definitivamente instalados e os anjos da guarda disponíveis eram seus aliados (sem essa de simpatizar com os adversários e considerar os lusos um perigo) e passariam aos índios mediante a conversão possível pela via da catequese. Em qualquer situação, a resposta é a mesma: ele, o anjo, não estava aqui.E a resposta de Murilo Mendes é que ele estava passeando, como certos poderes (autoridades) de nossa história tão recente. Enquanto isso, todo mundo vem aqui, seja de que confissão for, e os índios estão sujeitos ao desamparo quando o cabrão e a boa gente pões patas e os pés em solo até então indígena. Ironia do destino, ou conseqüência funesta para quem “colhe o que semeia”, o anjo da guarda dos índios, no final do poema, está a deriva, perdido, náufrago enquanto seus protegidos submergem sob as ondas tempestuosas de invasores ocidentais; e, onde quer que o anjo tenha ido parar,... não voltou nunca mais.
Adeilson Santana

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